– Mãe,
sonhei com o deserto,
mas não vi passar a serpente.
– Meu filho,
se aquilo que sonhaste não chega
para encheres a barriga
ao teu desejo e ao teu sossego,
canta,
canta, com a voz voltada para o nascente,
enquanto lavras,
e lavras a força
e a dança do leopardo.
– Mãe,
sonhei com a floresta,
mas a floresta não tinha céu,
não crescia da Terra,
não tinha árvores nem capim.
– Meu filho,
se aquilo que sonhaste não presta,
joga tudo no fogo, pela manhã,
e diz:
“Bom dia,
ó Dia acabado de nascer,
bom dia!
Faz
com que os ancestrais
devorem todos os meus medos,
aceitem esta pequena labareda
e espantem dos nossos caminhos o Kapapa
e os Cazumbis!
Bom dia,
ó Dia acabado de nascer,
bom dia!”
– Mãe,
sonhei com o rio,
mas não vi a água que ele levava,
não sei se tinha peixe
ou jacaré.
– Meu filho,
se aquilo que sonhaste te deixou confuso,
lava-te na primeira água da chuva,
antes de te sentares na pedra,
com as mãos estendidas para o fogo,
à espera da noite.
– Mãe,
sonhei tanto, tanto,
esta noite!…
– Meu filho,
deita aqui a tua cabeça,
porque meus
são os prodígios e os teus dias,
que crescem,
crescem,
a encantar os horizontes,
iluminando
a tua altura de menino.
Deita,
deita aqui a tua cabeça,
meu filho.
Zetho Cunha Gonçalves, Rio sem margem